quinta-feira, 10 de março de 2011

SP: Quintas (49 parte II)

Marciano Vasques
   
APENAS DISCOS VELHOS

“Tudo depende só de mim”
Charles Chaplin

O que significa para a multidão que passa um LP intitulado “gracias a la vida” do grupo Tarancón gravado em 1976 e exposto numa feira livre ou num sebo ou ao lado de outros discos numa calçada qualquer?

O que significa para a multidão que passa o LP intitulado “Grávido” do Gonzaguinha, gravado em 1984 ou o LP “Muito dentro da estrela azulada” de Caetano gravado em 1978? Para a multidão que passa, nada. Para mim que pássaro, tudo. As coisas significam pela vida vivida, pelo que se viveu, pelo que se vive, pelo que se engravidou.

Uma capa de disco pode ser um belo quadro com bela moldura na parede. Depende apenas da vida vivida em torno dele. A música nunca está sozinha.

Em 1978 estaria ainda circulando nas bancas o jornal MOVIMENTO? Em 1984 estaria o “Lindo Lago do Amor” escondido em alguma casa?

É sempre bom lembrar que na noite em que um jornalista foi assassinado, no teatro da Fundação Getúlio Vargas acontecia um show do grupo Tarancón, o mesmo grupo que percorria a periferia de São Paulo apresentando-se em igrejas e salões comunitários com canções como “Parabien de la paloma” e “soy libre soy bueno”

Quem esteve lá, naquela noite da Avenida Nove de Julho direcionou a sua vida para um fazer poético inevitável. As coisas, elas , como partes inseparáveis da vida, caminhavam para a literatura.

Sim! Eu desenhava. Lembro-me de que quando chegava na redação do “Notícias Populares” era esperado, não eu exatamente, mas as tiras, elas sim importavam. Depois no jornal “Movimento”. A ilustração aprovada em Brasília, um índio fazendo continência. A matéria era sobre uma visita do general Ernesto Geisel à Amazônia. 

Sempre fui louco por desenhar.

Quando menino ficava horas e horas, sentado na terra do quintal, na mesma posição, a desenhar. A criar capas de gibis imaginários, tantos heróis, tantos títulos de aventuras, centenas e centenas a cada dia, edição nº 145, edição nº 208, e assim por diante... O desenho acompanhou-me a vida inteira. Mas a vida segue fielmente os seus caminhos. Cabe a cada um transgredir. Transgredir talvez seja a grande poesia. A minha forma de aventura, a minha aventura. 

Pois quem se punha a criar centenas de aventuras diariamente nos rabiscos feitos com uma varinha na terra de areia do quintal compreendeu mais tarde que é a aventura que dá um sentido para a vida, por isso os grandes clássicos juvenis não morrem jamais.

Um longo caminho foi percorrido até a chegada da literatura. E da literatura feita para um grupo restrito até a Infantil foi outra caminhada.

Tudo caminhou dentro de mim e foi divertido. Sempre é, quando a alma quer.

De que forma eu poderia encontrar o outro? Na medida em que reconheço que o outro me completa, que é no outro que nos tornamos gente, o outro passou a ser a busca principal dentro de um emaranhado de buscas. Passei pelo coletivo, pelo grupo, e com ele aprendi muito, principalmente a valorizar o indivíduo, a compreender que o indivíduo é superior ao coletivo, mais importante, o principal. Aprendi com esforço e sofrimento que se o indivíduo for esquecido ou deixado de lado, o grupo é uma farsa, o coletivo é uma falácia, uma mentira gigantesca. 

Partidos políticos adoram o coletivo, e às vezes cuidam bem do indivíduo, mas apenas dos dirigentes, os líderes.
A política muitas vezes imita a vida.

O que significa para a multidão que passa uma pilha de discos velhos? Talvez apenas discos velhos, capas e capas, uma ou outra canção na memória, apenas.

Mas sempre aparecerá alguém que terá um olhar profundo para um disco velho, alguém que tem uma história, que sabe que um disco velho pode ser um belo quadro na parede. 

Alguém que não se importa com a multidão que passa, porque a multidão que passa não pode compreender, pois para compreender é preciso sentir, e para sentir é necessário que a vida tenha sido vivida. Uma canção nunca está sozinha.

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