quinta-feira, 4 de novembro de 2010

SP: Quintas (33)

O ESPÍRITO DA RÃ

O menino que dormia com a canção de Caetano lê A Dialética do Esclarecimento , de Adorno e Horkheimer. O tempo, de alma fugaz, é o velho senhor. Meninos crescem. Fiquei olhando para este e me pus a pensar que não são iguais. Constatei sobressaltado que determinados meninos ao crescerem, sem ao menos se dar conta colecionam medos, temores, sem nunca avaliarem a própria inutilidade do medo, da insegurança, ou mais ainda, o efeito devastador, a ação paralisante desses sentimentos sobre a vida. Sem querer eu estava pensando no próprio tempo. 
No dia que geou sobre as parreiras do sul, também pensava no tempo e pela primeira vez compreendia a minha vocação de rã, não “A Rã Que Queria Ser Uma Rã Autêntica”, mas “A Rã Que Está No Fundo do Poço”. 
A compreensão alargava sintomaticamente o meu olhar, que se derramava sobre os telhados, a fuligem, os dormentes, a poeira, o giz, a chuva, o verde cheiro da grama, e neste derramamento se revelou o tempo. 
Quando, em qual momento, terá surgido o embrião da vocação de rã no fundo do poço? Como terá se erguido tal coisa? Como foi paulatinamente construída a idéia confusa de destino, com a incapacidade de administrar a própria mente? Levá-la para um porto, um seguro cais? Compreender finalmente que tudo se resolve inicialmente nela, no seu absoluto espaço, e só então, diante desta compreensão, poder ver com infinita transparência, que é necessário varrer a mente para que ela fique como um céu varrido, assim azul, pincelado de branco. 
Quando terá a minha alma encontrado as condições para viver na estreiteza? No encolhimento? Prisioneira de temores imarcescíveis? O que terá de fato contribuído acirradamente para que eu soterrasse nas entranhas do meu espírito o sufoco das margens, o medo, a incerteza, as angústias, a idéia supersticiosa de que às vezes não é possível se encontrar a saída? A idéia de que, pelo fato de estarmos vendo apenas uma fração do céu, somos distanciados da sua imensidão? 
Em quais condições e a partir de quais gestos começou a brotar em mim a separação entre a mente fértil e uma ação eficaz para a resolução de problemas e pesadelos? 
Que contribuição terá vindo da minha infância no sentido de semente ou fertilizante para o desenvolvimento de sensações e sentimentos de impotência ou nebulosidade visual diante da visão da generosidade fluente do universo? 
Que detalhes, que pormenores, que acontecimentos do cotidiano sedimentaram em mim a sensação de imobilidade que às vezes me assalta o coração, a idéia extraordinária de que as coisas negativas surjam sem que tenham originalmente sido projetadas em nossa mente? 
Sim, meninos crescem, e alguns acumulam em seu crescimento as seqüelas de um olhar severo, de uma voz dizendo coisas temerosas, de uma afirmação supersticiosa, e formam uma carapaça, uma casca dura, intransponível, aparentemente indestrutível, com a qual se refugiam longe do enfrentamento, se regozijam no reino do acomodamento. 
Mas o tempo, mesmo com a fugacidade da sua alma, nos revela que a manhã pode ser transparente como o seu próprio orvalho. 
Nos revela também que o espírito da rã pode ser alado. 
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Marciano Vasques

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