sexta-feira, 2 de julho de 2010

SP: Quintas (18)

Marciano Vasques
   

O ESCRITOR E A LAGARTA

Admirava uma lagarta comendo os verdes, quando fui perguntado sobre qual o mais importante filme do final do século. Respondi: “BUENA VISTA SOCIAL CLUB”.

Filme de Wim Wenders, com a participação de lendários músicos de Cuba, entre os quais Rubén González, Compay Segundo, Ibrahim Ferrer e Omara Portuondo.

Não é bem um filme, é um documentário comovente.

Tocante do inicio ao fim, precisa ser assistido mais de uma vez por   militantes, sectários, amantes da arte. Ajuda a refletir. A mensagem precisa ser captada. Está no filme, mas precisa ser sentida.

Vejo um esportista do futebol conseguindo mais um patrocínio, que vai, entre outras coisas, engordar muito a sua renda. São agora vários patrocinadores, várias empresas. É muito dinheiro, não apenas para o moço. Deslumbrante ver as grandes empresas investindo no esporte, patrocinando um esportista, um ídolo.

Isso me fez pensar numa situação onírica, melhor dizendo, utópica, melhor ainda, bizarra: o escritor Fulano de tal conseguiu mais um patrocinador, breve estará lançando o seu novo livro. É o quinto patrocínio que o autor consegue.Também o poeta Sicrano de tal conseguiu novo patrocinador e estará participando de um congresso de literatura no exterior, no qual estará representando o Brasil. E ainda, o autor teatral Beltrano de tal conseguiu um novo patrocinador. Está preparando a montagem de seu novo texto, que será encenado em várias capitais do país.

Por enquanto ficaremos felizes vendo as grandes empresas patrocinarem apenas a distração do povo.

Tempo atrás um jovem seqüestrou a esposa. Com uma faca na garganta dela, sete horas permaneceu. Exigiu a imprensa para expor a sua dor. Não suportava o sofrimento, ser traído arrebentava o seu coração, a indiferença da mulher o aniquilou por dentro, a sua possibilidade de ser feliz foi amputada com a zombaria que a esposa lhe impôs. A sua possível centelha de razão foi esmagada, esfarelada pelo desprezo do ser amado.Um homem pobre, infeliz, sem leitura.

A faca no pescoço foi a forma de mostrar o seu amor. Era só o que queria, mostrar o amor.Tragédia urbana, da periferia, daria um filme, uma peça de teatro, um romance, ou uma canção, como fez Gilberto Gil com “Domingo No Parque”. Gil é como Caetano, estrela imaculada que belas coisas faz.
Ponho-me a pensar. O que é um bom leitor? Penso que é aquele que tem em sua alma abundância de tolerância. Essa seria a matéria prima do bom leitor, tolerância. Em excesso.

Talvez ele seja o sujeito que aprendeu a dominar as gigantescas feras internas, com tolerância.Talvez se ponha a escavar o texto. Fazer com o texto o que brutalmente fizeram com a Serra Pelada.

E o que seria um bom escritor?

Penso que uma virtude do bom escritor é ter atenção para com a riqueza do coloquial.

Se ele despreza a riqueza do coloquial, falhou.

Como deve construir o seu texto?

Como uma lagarta.

O escritor tem parentesco com a lagarta, pois deve construir o seu texto como um casulo, que significa casa.

Assim como o seu texto deve ter um bom alicerce e também fortes e seguras colunas, deverá ser comparado ao casulo, que é construído em círculos, com os fios expelidos das entranhas.

O texto deve ser construído com a fineza do movimento circular do fio (fio que revela o caminho do labirinto) e o leitor, o grande escavador, terá diante de si a bela borboleta, a borboleta de vida eterna, que romperá o casulo, vitoriosa na sua metamorfose, após o período de intensa tolerância, a tolerância que é o brinde do leitor, a sua cortesia.

Sinestesia, o bom escritor valorizará as imagens sinestésicas da palavra, e a palavra dirá frio e dirá calor e ela, a palavra sinestésica do escritor contaminará a vida com luz.Com a sua palavra o escritor continuará o seu dizer. O seu dizer é poético, sinestésico.

O escritor erra, como todo ser humano, só os animais não erram, não têm o privilegio de errar.

E o erro é construtor, desde que acompanhado do pulo do gato.

Por isso a leveza, a sutileza e o silêncio são características essenciais do ser humano que busca o dom de ser felino. Se não for assim, se não tiver o pulo do gato, o erro não é construtor, não vale a pena.

O erro só vale a pena se for construtor, se for edificante. Se não edifica, melhor não existir. Quem desconhece o pulo do gato, melhor então ser como os outros animais, que não erram.

 Melhor seria o aprendizado sem erros, mas haveria de ser  uma quimera, uma fantasia.O que seria de um ser humano que nunca tivesse cometido um engano, e chegasse no alto da sua existência glorioso por nunca ter errado. Como imaginar uma criatura assim?

Quanto ao escritor, por sua condição de altamente produtivo e pela importância que tem nas sociedades humanas (se atualmente isso não é relevante, é porque as sociedades não são mentalmente saudáveis) adquiriu o direito saboroso do erro, pode errar quantas vezes for necessário, pois errando vai edificando e também fortalecendo o diálogo com o bom leitor.

O parentesco do escritor com a lagarta. Eis algo curioso. A lagarta comendo os verdes na sua preparação para o período de casulo pode ser comparada ao escritor se alimentando insaciavelmente com a vida, o seu alimento é a vida, e assim, depois, ele estará construindo o seu casulo, e a sua literatura terá lindas asas.

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