segunda-feira, 1 de setembro de 2008

RS: Vice-versa de setembro de 2008

Uma boa idéia que compartilhamos do blogue da AEI-LIJ São Paulo, o vice-versa gaúcho entra no ar com dois escritores bacanas e muito experientes: Caio Riter e Gláucia de Souza. 

Nosso agradecimento à Regina Sormani que plantou a semente no blogue da AEI-LIJ paulista!


Caio pergunta, Gláucia responde:

Caio Riter - O que significa, para você, escrever para crianças? Acredita ser diferente de escrever “para gente grande”? 

Gláucia de Souza - Creio que não há uma escrita PARA crianças. A questão está no direcionamento que é dado ao livro. Creio que o que existe é LITERATURA. E essa literatura pode ser direcionada à infância através do cuidado com a produção do livro, das ilustrações, dos projetos gráficos (ainda nesse aspecto, penso que não deveríamos ter o privilégio de livros ilustrados apenas para crianças). No meu caso, não penso que haja diferenças entre escrever para crianças a para adultos. Há a tentativa de eu escrever literatura. Principalmente em relação à escrita de poemas, essa separação torna-se bem mais difícil. Poema é poema. Não há poema PARA a infância. Para ser poema tem de possuir linguagem poética, ritmo, sonoridades que podem ser representadas ou não pelas rimas ou pelas repetições sonoras (aliterações, assonâncias etc). Para ser poema é necessário que a linguagem esteja em seu sentido figurado e as imagens tenham múltiplas significações. No caso da prosa, os textos ditos “para infância” trazem os mesmos recursos de um texto narrativo escrito para adultos: escolha de ponto de vista (narrador), de tempo, de espaço, de personagens. Tudo isso requer uma pesquisa séria, como a feita em literatura que se costuma chamar “adulta”. 
Em relação à produção do meu trabalho, gostaria de citar o caso do Bestiário, por exemplo. Para escrever os poemas do Bestiário, levei dois anos à procura de informações sobre Bestiários, animais retratados neles, significações simbólicas possíveis desses animais etc. Por se tratar de um tipo de livro em que a imagem caminha junto com o texto, a pesquisa se estendeu pelos estudo que a Cristina Biazetto fez de imagens de diferentes bestiários e dos contextos em que foram produzidas, como a Idade Média, por exemplo. No caso das Cantigas de ninar vento, também foram desenvolvidos estudos, nesse caso, em relação às cantigas medievais e às cantigas de nossa tradição oral.
A meu ver, não dá para dizer que as Cantigas de ninar vento e o Bestiário são livros de Literatura Infantil ou Juvenil. Tentei que fossem livros de Literatura. Assim, eles podem ser lidos/ouvidos por todas as idades. 

CR - Um dos elementos que se destaca na literatura feita para crianças é o seu caráter formativo. Este, no entanto, muitas vezes é confundido com “ensinamento” explícito, formal e moralizante. Pergunto: quais temas atraem a escritora Gláucia e a fazem verter histórias para crianças? Que recursos você utiliza a fim de não cair na armadilha de expor moralidades em suas histórias?

GS - Creio que a única forma de fugir do ensinamento explícito formal é dar ao texto um tratamento literário. Os textos literários são abertos para as inferências do leitor. Ele deve ser aberto. Só assim, o leitor pode depositar nele suas experiências de vida e de leitura, suas expectativas. Assim, os assuntos que me interessam são os assuntos que posso tentar transformar em literatura. E tudo pode ser transformado em literatura. O cotidiano também pode ser literatura. É por isso que ando sempre com diferentes pequenos cadernos onde anoto cenas, sons, situações, flashes de pensamentos, pedaços de palavras, frases etc. Depois vou organizando o que escrevo nos cadernos e “classificando” de acordo com os textos que estou escrevendo (que nunca são um único original, mas uma coleção de textos arrastados por anos e anos).
Por exemplo, uma situação de criação de que me lembro aconteceu na Tecelina. Certa vez, morava ainda no Rio de Janeiro e, andando de ônibus 438, por perto do Sambódromo, vi uma feira livre que, como todas, explodia em cores de legumes, verduras e tudo o mais. No final da feira, havia uma mulher muito velha, sentada num degrau de uma loja fechada. Ela estava rodeada de pequenas peças de crochê. Todo mundo passava por ela e não a via. Registrei a cena. A idéia de isolamento não foi o que me chamou a atenção naquela cena, mas a idéia de ela ter coragem de estar ali, no lugar “errado”, com uma produção tão diferente, ainda que colorida. Essa cena eu usei de certa forma no texto da Tecelina, quando ela se dispõe a vender chapéus numa pizzaria.
Outro exemplo de cena do cotidiano, que retratei no livro Catirina e a piscina, foi a da mulher que teve muitos filhos e morreu de parto e fome. Via muito esse tipo de situação quando trabalhei com crianças de uma favela no Rio de Janeiro, nos anos 80. Muito do que conta a Catirina são flashes de situações que registrei a partir da experiência com essas crianças. Vamos para a última parte da pergunta então. Que recurso utilizo para tentar escapar às armadilhas de expor moralidades nas minhas histórias... É só um recurso, mas que me dá uma trabalheira danada... Eu venho tentando dar um tratamento literário aos meus textos, pois, quando um escritor trabalha seu texto literariamente, a possibilidade de ele ter essas moralidades explícitas reduz!

CR - Num marte pequenininho” é uma bela fábula sobre a necessidade de viver-se em sintonia com o outro. Neste seu texto, há belas metáforas, tais como, o planeta, as raízes, as árvores. Poderia contar como se deu o processo de criação deste texto?

GS - Num marte pequeninho começou e ser gerado na década de 80. Escrevi um pequeno texto em que dois marcianos não se conheciam e, depois, acabavam se encontrando. Era todo rimado, muito “certinho” e não me convencia muito. Escrevi essa história, pois, no Catirina e a piscina (primeiro texto que efetivamente escrevi), a Luzia, irmã da Catirina, conta várias histórias para distrair as crianças. Uma delas era a de dois marcianos. O texto ficou guardado, até que mostrei para um amigo, que o leu e disse: “Isso falta conflito! É tudo rápido demais! Eles nem sofrem para se encontrar!’. Na mesma hora pensei que o único jeito de eles “sofrerem” para se encontrarem num planeta tão pequeno era eles estarem presos, amarrados por raízes. Aí reformulei o texto todo e o enviei para a Editora DCL.

CR - Você, além de contadora de histórias, também é poeta. No que difere o processo de criação de um poema do de uma história?

GS - É profundamente difícil, para mim, escrever narrativas. Talvez seja por isso que eu procure escrever tentando me colocar no lugar do outro (os outros que eu vejo no cotidiano). Já um poema tem de trazer sonoridades, ritmo, musicalidades, aliadas a sensações corporais, sons, movimentos... Cada vez me convenço de que os poemas devem ser sensoriais, corporais. Para fazer um poema, também é necessário ser “fingidor”, como diz Fernando Pessoa. Parafraseando Fernando Pessoa, o poeta é um fingidor que tenta representar o sentimento universal, mas, para isso tem de resgatar a “dor que deveras sente”. Acho que é menos difícil fazer isso nos poemas, pois, podemos mesclar esse “fingimento” com o trabalho com os sons das palavras... Lidar com o poema para mim é muito mais fácil porque, quando escrevo, só consigo ouvir sons. Quase nunca formo imagens. Talvez por isso precise registrar cenas do cotidiano por escrito para compor histórias.

CR - Percebe-se que muitos de seus livros foram ilustrados pela Cristina Biazetto. Na sua opinião, qual a relação que deve se estabelecer entre escritor e ilustrador? 

GS - No meu caso, o ilustrador é aquele leitor que me ajuda e enxergar visualmente as personagens que eu invento. Não consigo imaginar rostos, cenários, porque sempre acabo escrevendo com os ouvidos (acho que os meus ouvidos nasceram bem maiores do que os olhos). Os livros ilustrados pela Cristina Biazetto foram textos em que a produção da imagem começou a ser feita antes de os originais serem contratados por uma editora. Assim, ficou mais fácil para eu entender o texto que escrevi, para o mudar etc. No caso do Bestiário e das Cantigas, eles foram para de projetos em que o texto, as imagens e as melodias (no caso das Cantigas), foram se compondo, e eu pude acompanhar o nascimento delas. Acho que o vínculo entre escritor e ilustrador deve ser uma relação de parceria, não necessariamente de criação conjunta, mas de troca de linguagens. Isso vai enriquecer, com certeza, o trabalho de ambos: escritor e ilustrador. O livro destinado à infância é cada vez mais um híbrido em que a palavra e a imagem interagem. Nada mais natural que os profissionais da palavra e os da imagem possam trabalhar juntos na composição de um livro, criando e/ou dialogando sobre sua criação. 


Gláucia pergunta, Caio responde: 

GS - Como é o seu processo de criação de um original?

CR - Sempre minhas histórias nascem a partir de um tema que me sinto convidado a pensar, a escrever. É em torno deste assunto que nascem os personagens, as ações, os diálogos. Quando é novela mais longa (as juvenis), procuro elaborar um esquema orientador, a fim de otimizar meu pouco tempo para a escrita. Costumo, também, contar a história pra mim mesmo, inventar cenas, tendo sempre o olhar atento ao que ocorre à minha volta, pois tudo pode ser inspirador. Outro dado importante, anterior à escrita propriamente dita, é estabelecer um norte, um ponto de chegada, a cena final. Tendo claro para mim o destino do protagonista, tudo se torna mais simples e a escrita, então, passa a se tornar necessidade. 

GS - Você iniciou sua carreira como escritor através da publicação de livros endereçados a jovens leitores. Conte como foi o seu processo de iniciação de escrita de livros endereçados a crianças mais novas.

CR - Na verdade, eu não tinha a intenção inicial de escrever para crianças. Foi tudo meio ao acaso. A Laine, minha mulher, vivia me incentivando a isto, dizia que eu levava jeito para escrever para crianças. Mas eu relutava. Pois bem, quando ela engravidou de nossa primeira filha, a Helena, desejei dar-lhe um presente bacana, diferente, inusitado, único. Aí me veio à mente seus pedidos. Então, escrevi, sem que ela soubesse, um livro infantil: O fruto verde.. Desenhei-o e montei-o artesanalmente. Queria que fosse presente único.
Após entregar-lhe o livro, peguei gosto por este universo de fantasia que é a literatura infantil e passei a escrever outros textos, e a montá-los também, sem jamais me passar pela cabeça a hipótese de ser autor. Pensava: quando minhas filhas crescerem, terão os livros dos escritores para ler, e também os que o pai fez. Essa era a minha intenção.
Mas (...as histórias sempre têm um mas...) uma amiga me apresentou para a Sandra Telló, uma professora que estava criando uma editora (Interpretavida), e ela gostou de meus textos. Assim, em 1994, meu primeiro livro foi publicado: Um palito diferente. E, aos poucos, a coisa foi acontecendo, novos livros nascendo e alguns sendo publicados. Mas aquele primeiro. Bom, aquele permanece único, como desejei que fosse. 

GS - O ser leitor interveio na sua relação com a escrita de livros?

CR - Com certeza. Acredito que inexistam escritores que não tenham sido leitores antes de nascer o desejo da escrita. Mergulhar no fantástico universo da leitura, com certeza, me formou no ser que sou hoje. Vivi uma infância com poucos livros em casa, mas lia muito gibi, pulp fiction e fotonovelas. Era o que entrava em casa. Porém, já adolescente descobri o mundo mágico das bibliotecas públicas e tudo o que elas tinham a me oferecer em histórias. Daí, foi paixão eterna. Nunca mais consegui me apartar dos livros. 

GS - Escolha três de seus títulos, fale sobre eles e sobre os motivos que o levaram a citá-los.

CR - Escolher três? Bah, a escolha de Sofia. Mas vamos tentar:

1. O rapaz que não era de Liverpool, (Edições SM) por ser um divisor de águas em minha carreira literária, visto que, com sua publicação e com o prêmio que recebi, acabei ficando conhecido fora do RS e atravessando as fronteiras do Mampituba. Este livro venceu vários prêmios e tem recebido bons comentários da crítica especializada. Mas, sobretudo, tem agradado a muitos leitores.







2. Atrás da porta azul (WS Editor). Livro que foge um pouquinho do meu jeito de escrever, é uma aventura meio fantástica, em que homenageio um dos livros de que mais gosto: Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol.




3. Eduarda na barriga do Dragão (Artes e Ofícios). Texto infantil, narra a história de uma menina cheia de medos que encontra a libertação na palavra poética. A ilustração da Elma (para mim, uma das melhores ilustradoras, ilustrou também o meu O Fusquinha cor-de-rosa – ed.Paulinas) é extremamente criativa e contribui com a beleza da edição. 







GS - Como foi o processo de criação de O rapaz que não era de Liverpol? Houve uma pesquisa sobre o tema Beatles ou sua opção recaiu sobre um repertório de gosto pessoal?

CR - O rapaz que não era de Liverpool nasceu de uma situação que minha esposa ouviu na escola em que atuava. Um garoto, adotado, teria dito a seus pais que eles não tinham o direito de mudar a história dele ao adotá-lo. Lembro que disse para minha mulher: Bah, mas isso é frase de livro. Assim, a partir desta cena – aliás, a primeira que escrevi para o livro – fui criando a história de um garoto que, numa aula de biologia, ao estudar as leis de Mendel, descobre (ou confirma) suas suspeitas de que fora adotado. Eu sabia que não queria escrever uma história de alguém à procura de suas origens. Não. Queria centrar no conflito de, de repente, alguém se descobrir não parte de algo do qual sempre acreditou participar. Daí, veio o título: O rapaz que não era de Liverpool. Então, fui armando a rede de conflitos que iria cercar o Marcelo: a paixão pelos Beatles, a separação dos pais, o amor por DJ, a descoberta da adoção, o exílio na casa da dinda. Fui pesquisar biologia e a trajetória dos Rapazes de Liverpool. Comprei seus cds e escrevi, ouvindo-os. O legal é que a maioria das pessoas estranha eu não ser um fã incondicional dos Beatles. Gosto disso. Significa que o livro convence direitinho.


Postado por H 

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